sábado, 28 de abril de 2012

Síndrome

“no meio do caminho tinha uma pedra” Carlos Drummond de Andrade

Uma soma de respostas físicas e mentais explodia junto à voz estridente do chefe, palavrões atravessavam-lhe cada um de seus princípios.

Com a alma espremida numa jaula de obrigatoriedades, engoliu  aquele tempo seco, mascarando que o suficiente fosse deixar de sorrir ao restante do dia. Odiou os grampos, as teclas, o modelo socioeconômico dos países emergentes e o modo como a copeira desajeitadamente limpava o scanner ao lado de sua mesa.

Saiu comprimindo os pulmões, com passos largos e apressados até o carro. Caminhava olhando seus pés, como se cobrasse das pernas mais agilidade. Enquanto odiava tudo aquilo, não viu a garotinha que brincava de pisar nas cores certas da calçada, que fingia atravessar um lago, num mundo dela, com cores próprias, sons próprios, luzes próprias. Esbarraram.

Os pulmões explodiram, ele gritou, a vibração das cordas vocais instintivamente lhe incitava um prazer quase animalesco. Gritou com tudo que odiava, com o caminho que ela atrapalhou, com a insatisfação de seus passos fadigados.

Não houve resposta, com os olhos projetados para o horizonte ela retomava seu caminho, deu dois passos para o lado, como se desviasse de uma grande pedra.

domingo, 21 de novembro de 2010

Do que se era

- Ta vendo aquela senhora?

-Tô! O olhar dela até arrepia, né?

-Agora tá vendo esses olhos perdidos? Esse é um leitor, os leitores não gostam muito de chegar ao meio de um diálogo e ficar sem entender muito bem o que está acontecendo. Por isso que eles ficam com esse ponto de interrogação gigantesco saltando da pupila.

-Mas eles sabem quem somos?

-A maioria deles não, são apressados, chegam procurando um monte de coisas, revirando às páginas atrás de um sentido. Alguns trazem seu coração nas mãos querendo algum tipo de cura, sabe? Parece uma epidemia, cada dia os casos de corações partidos são mais comuns entre eles.

-E ela? Por que fica calada? E por que dessas rugas se nós, os poemas, nunca envelhecemos?

-Ela já embalou muitos romances, já brilhou debaixo das lágrimas de moças sonhadoras, e já fisgou o peito de muitos rapazes sensíveis. Mas hoje tudo anda meio seco, o amor é um estigma, as pessoas o paginam depressa demais, sem se dedicar ao tempo dos detalhes, dos gestos mais simples. Os olhares não foram feitos para calcular os riscos e dimensionar as profundidades, são apenas portais que permitem que se mergulhem uns nos outros. Sei que enquanto as pessoas permanecerem assim tão distantes, isso e tudo o que somos nunca farão sentido algum.

Sem poder deixar de ouvir, chorava com os olhos de Neruda, quase inteiramente opacos, quase dementes.

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Papai

Sinceramente, não me lembro da sua voz, nem dos seus traços, sou completamente incapaz de citar uma característica marcante sua, ou de revelar como seu olhar transcorria nesse cenário que hoje nos envolve - eu e aqueles que restaram.

Acabei te conhecendo como esse quase-eterno, quase-vazio, uma sombra concisa passeando por minhas lembranças. Um sorriso sem borda, sem alma, sem traços, que ficou guardado tão indefinidamente em mim, dissimulando minhas lembranças nessa imagem insuportavelmente breve.

Foi difícil crescer sem querer me livrar o tempo todo do que havia impregnado de você em mim, foi difícil crescer enquanto minha esperança era de diminuir, e depois de me tornar tão minúsculo, mas tão minúsculo, poder observar esse teu último sorriso indo embora até se perder no horizonte, como um alegre pôr de sol.

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Construção

Assentei tijolo por tijolo com toda atenção das minhas décadas, e depois de dedicar quase todas elas nessa empreitada, acabei percebendo quão escuro e vago havia se tornado o espaço entre as quatro paredes da minha vida.

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Constelação


... e como eu queria

que nunca adormecesse

o brilho nos teus olhos.

"Não me venha com mais infância"

De todas as infâncias aqui vividas, aqui postadas, aqui lembradas, eu não quero mais lembranças de uma infância. Seja sempre criança, não me venha com infância, infância é coisa de quem já envelheceu. Envelhecer é coisa de coração que vai morrer. Não me fale de infância, aqui somos eternamente esses olhos encantados.